Comida de laboratório

Ryan Matthew Smith/divulgação
Crédito: Ryan Matthew Smith/divulgação

A vida do americano Nathan Myhrvold daria um livro cheio de reviravoltas. Nele, o matemático com Ph.D. em física pela Universidade de Princeton poderia falar de suas premiadas fotos de animais selvagens em Botsuana, do pós-doutorado em cosmologia com o físico Stephen Hawking ou das ossadas de tiranossauros que escavou e descobriu em Michigan (uma delas está na sala da sua casa). Talvez fosse o caso de mencionar suas contribuições às pesquisas sobre extraterrestres, o campeonato mundial de churrasco que venceu em 1991 ou o período em que, como executivo da Microsoft e braço direito de Bill Gates, ajudou a escrever seu best-seller A Estrada do Futuro. Com todo esse currículo, o empresário Nathan, 51 anos, passou os últimos três escrevendo não uma biografia, mas um livro de receitas. “Admiro quem consegue investir todo o seu tempo, energia e dinheiro em um único objetivo na vida. Infelizmente, não sou assim. Meus objetivos mudam a todo momento.”

O objetivo da vez é mostrar ao mundo seu recém-lançado Modernist Cuisine: The Art and Science of Cooking (Cozinha Modernista: A Arte e a Ciência de Cozinhar, dividido em cinco volumes, sem edição no Brasil), obra que escreveu em conjunto com os chefs Chris Young e Maxime Bilet. Mas o que fez o dono de uma empresa de invenções tecnológicas e aquisição de patentes dedicar tanto do seu disputado tempo a um compêndio de receitas? “Se fosse fácil responder, não teria escrito um livro de 2.400 páginas. Quero explicar aspectos essenciais da ciência dos alimentos, esmiuçar as técnicas da culinária modernista.”

Por “culinária modernista” entenda-se o movimento iniciado pelo chef catalão Ferran Adriá, já chamado de “cozinha molecular”, que transforma a cozinha em um laboratório. Nesse tipo de gastronomia, mais do que bons ingredientes e técnica, é necessário tecnologia. Esse é o princípio que usa para desenvolver suas 1.500 receitas sob a ótica da química e da física, com experimentos científicos sobre a melhor forma de grelhar um bife ou de fritar uma omelete.

>> Veja mais fotos dos pratos preparados no laboratório-cozinha


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NOVOS INGREDIENTES: Máquinas como o evaporador rotativo ajudam Nathan Myrvold a extrair substâncias inusitadas para suas receitas



TECH CHEF

Aos 14 anos, o superdotado Myhrvold entrou para a faculdade de matemática. Aos 23, recebeu seu Ph.D. em física teórica. Quatro anos depois começou a trabalhar na Microsoft e, aos 41, fundou a Intellectual Ventures, companhia bilionária da qual é acionista. Só falhou em meados dos anos 90, quando tentou ingressar em La Varenne, uma das mais respeitadas escolas de culinária da França. Em vez de desistir, estagiou nos melhores restaurantes de Seattle, em Washington, e passou com louvor no segundo exame. “Desde menino, sempre gostei de cozinhar. Infelizmente, não tenho condições de virar um chef e abrir um restaurante. Meu trabalho atual ocupa boa parte do meu tempo”, diz o cientista, cuja empresa já foi chamada pela revista Fortune de “monstro das patentes”. A Intellectual Ventures é uma máquina de produzir e comprar inovações: detém cerca de 30 mil patentes, muitas relacionadas à tecnologia de alimentos.

Os experimentos do cientista são feitos em uma megacozinha tecnológica. “Quando cheguei ao galpão, vi um monte de equipamentos misteriosos espalhados por todos os cantos. Não fazia ideia onde estava me metendo”, descreve Bilet, chef e co-autor do livro. Os 1.800 m2 do galpão erguido em Seattle são dedicados às pesquisas gastronômicas e por isso estão cobertos de traquitanas, como uma centrífuga com potência 13 vezes maior que a da força da gravidade (veja como funciona na página ao lado) e um evaporador rotativo que extrai molhos e óleos a partir de ingredientes nada convencionais, como pétalas de rosas. Há ainda uma autoclave (aparelho usado para atingir pressão e temperaturas elevadas), que esteriliza alimentos e faz sopas, e um aparelho ultrassônico para fazer batatas fritas mais crocantes.

André Silva       
 


As fritas, aliás, são um bom exemplo de como aplicar estudos detalhados ao deleite à mesa. A receita de “batatas perfeitas” de Myhrvold envolve selar o alimento cortado em um saco plástico fechado a vácuo e aquecer o pacote em vapor durante 15 minutos. Depois, o saco é mergulhado em água e passa pelo chamado banho ultrassônico: o líquido recebe vibrações de altíssima frequência, criando microfissuras no alimento. Após uma hora e meia, as batatas são reaquecidas no vapor e, só então, colocadas em óleo fervente (170 °C) por mais três minutos. Anotou? Outro banho de óleo fervente (desta vez a 190 °C) e pronto: em duas horas você tem a mais “crocante por fora e macia por dentro” batata frita que a ciência pode produzir. Para chegar a essa fórmula precisa, temperatura, tempo de cozimento e outras variáveis foram medidas e estudadas dezenas de vezes pelo pesquisador.
O
s equipamentos high-tech da cozinha produziram uma série de descobertas. O primeiro volume de Modernist Cuisine, por exemplo, demonstra com medições por que os vegetais (ou, pelo menos, boa parte deles) cozinham mais rapidamente em água fervente do que no vapor. O segundo volume recorre a fórmulas que analisam fluxo de calor para provar que um grill alimentado com carvão tem desempenho superior ao da churrasqueira a gás. O livro quatro diz que, quando você abrir uma garrafa de vinho e ele estiver com forte aroma de estragado, é possível retirar as impurezas com polietileno (aquelas bolinhas de plástico compradas em lojas de aquário para purificar a água).

Na cozinha maravilhosa de Nathan Myhrvold também há lugar para heresias. Há, por exemplo, uma sugestão que deve apavorar enófilos, mas que é garantida pela ciência: decantar vinho usando um liquidificador em vez do tradicional decanter. De acordo com o cientista, batê-lo por 30 segundos no aparelho é muito melhor para oxigená-lo do que deixá-lo no recipiente de vidro para a troca de gases.


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COZINHA MARAVILHOSA DE NATHAN: Centrífugas e máquinas de vácuo são usadas no laboratório gastronômico de Seattle



RECONHECIMENTO

Recém-lançado nos Estados Unidos, onde esgotou 6 mil cópias nos primeiros dias da pré-venda, Modernist Cuisine vem sendo elogiado por grandes chefs internacionais. “Ele vai mudar a maneira como vemos a gastronomia. É o melhor exemplo de diálogo travado entre cozinha e ciência”, afirma o catalão Ferran Adrià, o chef mais festejado do mundo, que ficou famoso à frente do disputadíssimo restaurante El Bulli. “O resultado é um livro maravilhoso, que explora as possibilidades dos últimos avanços científicos”, concorda o inglês Heston Blumenthal, do renomado restaurante The Fat Duck.

Para demonstrar o famoso passo a passo das receitas, o livro traz imagens de alta qualidade que receberam atenção especial de Myhrvold — sim, ele também foi fotógrafo. “Ele mesmo ia fotografar, mas não conseguiu tempo. Tiramos muitas fotos, sob vários ângulos, com diferentes lentes, trabalhando 50 horas por semana”, conta o americano Ryan Matthew Smith, encarregado de clicar o projeto. As imagens mostram a cozinha de uma perspectiva inusitada: a de dentro das panelas. Para realizar a proeza, foi necessário serrar algumas delas ao meio. Na produção, Smith calcula ter feito 140 mil fotos. Dessas, “apenas” 2.900 imagens entraram.



André Silva
 
        Nathan Myhrvold não revela quanto gastou para montar sua gigantesca cozinha. Há quem calcule que a extravagância não tenha saído por menos de US$ 2 milhões. Pouco, comparado ao faturamento de US$ 700 milhões da Intelectual Ventures com licenciamento das suas milhares de patentes em 2010. Outro segredo que Myhrvold não entrega é quantos quilos engordou. Além de chefiar uma equipe de 36 profissionais, entre cozinheiros e cientistas, ficou responsável por saborear os pratos e fazer ajustes nas receitas. Das 1.500, sua favorita é o churrasco.
Ele se orgulha de explicar em sua obra como grelhar um bife redondo à perfeição e como a relação entre espessura e tempo de cozimento da carne não é direta: um hambúrguer duas vezes mais grosso leva quatro vezes mais tempo para ficar pronto. Se conhece a fama do Brasil no assunto? “Já provei pratos como churrasco e feijoada, mas as versões que experimentei não devem ser tão boas quanto as originais, feitas no lugar”, diz Myhrvold, que conta querer conhecer o país em breve. A visita pode incluir o lançamento de Modernist Cuisine em português. Por enquanto, apenas quem desembolsou US$ 625 nos EUA têm a obra completa. Apesar do preço salgado, o livro é indicado para leigos. Difícil só vai ser conseguir os equipamentos que ele usa para preparar as receitas.